10.5.11

A noite esta tão nítida. O cheiro a Verão corta-me a pele. Lá vem ele. Numa coreografia tão perfumada, tão atraente. Os lábios, por si mostram que também sabem dançar e abraçam o ar, esticam-se o mais que podem e surge um sorriso, aquele sorriso que mete nojo aos pobres. Os olhos, estes conscientes de que ele é um anjo mau não me traem como fazem os lábios e mantém-se fieis. Cravam-se nos olhos maus, nos olhos infiéis dele. Infiéis por me sussurrar o seu segredo, falam-me ao ouvido que ele esta morto. Mais que morto. E ele furioso com os olhos. Porque os olhos o traem e não deviam transparecer o preto que o pinta agora, sem mim. E os olhos bons, que são os meus, matam os olhos maus, outra vez. Lá vem ele. Traz o vento. Numa mão o mundo e no outro eu própria. Traz na pele a minha pele, ou restos dela, e o perfume do suor das noites que nos esquecemos de viver, mas não deixam de existir. E lá vem elas com ele, as noites que nos esquecemos de viver, coladas com sangue fundido dos dois, coladas à culpa por não termos escrito o nome no céu mais vezes. Esta a três metros e o tempo trinca-me. Esta a três metros e o mundo embacia-se com o vapor de água de ambos que em tempos escorria no vidro do quarto. Tão bonito o vidro do quarto. E estamos cá de novo, no centro do mundo, com vidros embaciados que nos suportam os gritos, que nos amparam o abraço que queremos dar. Os vidros embaciados não deixam, barreiras belas.  Esta a menos de um metro de mim e o meu coração entra em orgasmo quando confrontado com o coração do próprio amor. Sempre o apreciei muito, o coração do amor. Nunca se deixa tocar, e passar de gentes para gentes intacto, sempre com o mesmo perfume. Mas eu atingo-o e o meu coração funde-se com ele. Vira costas. Essas costas de mil metros que sempre usei como mesa de trabalho. Essas costas que ainda cheiram à minha saliva. E o parceiro do meu coração foi arrancado, como pele do corpo. Começa a sangrar, pobre coração. E grita, pede ajuda como quem pede comida. Afinal o seu alimento é o coração do amor. E o meu alimento é ele e o seu nome. Não fico sozinha porque tenho o coração. Ambos gritamos como crianças magoadas. Vamos lamentar-nos a noite toda, eu e o meu coração. Mas só esta noite porque amanhã vai repetir-se tudo, mais uma vez. E lá vai ele, traído pelos olhos que me contaram o seu negro.

Sem comentários:

Enviar um comentário